O primeiro desafio foi provar que ainda existiam. Por décadas, a história ensinou que os índios charrua foram traídos e massacrados por colonizadores europeus após anos de perseguição. Mostrar que a trajetória do grupo não acabou ali se tornou a grande luta de Acuab, primeira mulher cacica-geral do povo charrua no Rio Grande do Sul e a principal liderança da aldeia Polidoro, em Porto Alegre.
A história da etnia tinha um final conhecido: o confronto de Salsipuedes, em 1831. O embate acabou se tornando um massacre oficial (planejado pelo governo uruguaio) e desleal. Caciques foram convidados a discutir uma aliança contra o Brasil, mas, desarmados, acabaram mortos, presos ou obrigados a trabalharem para estancieiros. Até mães foram separadas de seus filhos. A herança cultural charrua, principalmente a língua, acabou se perdendo ao longo do tempo.
Mas essa narrativa também tem um recomeço, ainda que tortuoso e incógnito. A trajetória descrita e reunida por Acuab mostra que parte da etnia conseguiu cruzar a fronteira com o Brasil e se instalar na região das Missões, no noroeste gaúcho. A invisibilidade social viria a se tornar a principal estratégia de sobrevivência.
A reconstrução oficial da história dos charrua começou em 2007. Na genealogia do grupo, a que a reportagem teve acesso, o arqueólogo Sérgio Leite relata a surpresa que teve ao ser apresentado por Acuab a um conjunto de peças (três pedaços de rocha e duas boleadeiras) que só poderia pertencer aos charrua. O laudo dele abriu caminho para o reconhecimento do grupo pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
“Eu só conhecia aquele tipo de material ao analisar evidências escavadas ou presentes em acervos de museus. Segundo o que comumente se afirma, no Rio Grande do Sul temos descendentes de guarani e de caincang. Ora, ao identificar-se como um novo grupo, ficou claro para mim que algumas ‘verdades’ já bem estabelecidas estavam balançando”, registrou Leite.
Mas como pode uma versão equivocada da história vigorar por tanto tempo? Uma das principais hipóteses é apresentada por Sérgio Baptista da Silva, doutor em antropologia e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Esse grupo de Porto Alegre, da Polidoro, conta uma história bem interessante das formas como eles faziam para se refugiar, para se esconder, para não aparecer, para se tornar invisíveis.”
Coletores errantes
Os charrua historicamente habitaram a região dos pampas do Rio Grande do Sul, do Uruguai e do sul da Argentina. Viviam em aldeias chamadas toldos, estruturas rústicas adaptadas ao estilo de vida errante dessa etnia. Tradicionalmente, não praticavam a agricultura e estavam sempre em busca de novos locais de caça e pesca.
Com a chegada dos europeus ao continente americano, no século 17, teve início uma série de confrontos que duraria mais de dois séculos. “Foi duríssimo. Óbvio que os espanhóis e portugueses tinham uma vantagem bélica enorme. E os charrua são muito aguerridos, não se deixavam vencer nunca, protegendo seu território”, explica Silva. A grande mudança ocorreu com o violento Salsipuedes, que passou à história como a destruição da etnia.
“Talvez a questão mais surpreendente, e ao mesmo tempo a mais importante, do grupo da Acuab seja mostrar grupos que acabaram escapando desses massacres, se refugiaram nos fundos de grandes latifúndios, em regiões impróprias para criação de gado, longe das sedes de estâncias, e lá se mantiveram”, afirma Silva.
As perseguições não cessaram, a exemplo da infância de Acuab, no interior da cidade de São Miguel das Missões. Aos sete anos, já sabia subir nas árvores para escapar dos peões das fazendas. “Eles foram lá pra matar nós. Com arma de fogo, pau e fogo”, descreve a cacica, enquanto agita os braços para mostrar como ia se agarrando de árvore em árvore. Hoje com 64 anos, Acuab mantém o porte robusto, apesar da baixa estatura. Questionada como chegaram a Porto Alegre, responde: “viemos rolando”.
O caminho até a Aldeia Polidoro
Eles começaram a “rolar” na década de 1960, quando a perseguição dos fazendeiros se acentuou. Cerca de dez famílias fugiram dos campos para a cidade de Santo Ângelo. Da época, a cacica lembra novos episódios de violência, a exemplo da agressão sofrida pelo pai por rejeitar o casamento da filha, então com 12 anos, com um homem mais velho. “Eles tinham uma tabuinha com um pregão desse tamanho na ponta. Foi com isso que deram nas costas do meu pai.”
O jeito foi continuar seguindo em direção ao Sul do Estado. No final da década de 1960, o grupo chegou a Porto Alegre, onde se fixou em moradias precárias na região pobre do Morro da Cruz. Permaneceu ali por 40 anos, apesar dos frequentes tiroteios associados a disputas do tráfico de drogas. Depois foram transferidos provisoriamente pelo poder municipal para um galpão da prefeitura, onde ficariam temporariamente. Acabaram permanecendo três anos naquele ambiente, que Acuab descreve como insalubre.
Em paralelo, foi ganhando força a luta pelo reconhecimento do povo charrua junto aos órgãos públicos. A cacica, ainda desconfortável numa cidade grande, chegou a viajar para Brasília, onde fugiu dos seguranças para chegar perto do então presidente Lula. “Meu deus, o homem era guarnecido mesmo. Ele tava numa oca lá em cima, tinha que subir aquela escada de concreto para chegar no Lula, e ainda pra ajudar tinha uma cerca de ferro toda guarnecida ao redor do governo. E eu pulei aquilo ali guria, pulei sem medo nenhum”.
Mas a cacica conseguiu entregar um documento com o pedido de reconhecimento de seu povo, que seria oficializado pela Funai em setembro de 2007. No ano seguinte, a prefeitura transformou uma área de 8,6 hectares, na zona sul de Porto Alegre, em reserva indígena municipal. Ali nasceu a aldeia Polidoro, onde vivem nove famílias.
Moradias provisórias da aldeia Polidoro
O grupo produz artesanato e cultiva frutas, legumes e raízes como mandioca. Parte tem empregos fora da aldeia e outra vive de doações sob condições precárias de moradia, em pequenas casas de madeira e chão batido. A única construção de alvenaria ali é a sede da aldeia, remanescente de uma antiga fazenda.
Há dez anos, quandos os índios se instalaram no local, a prefeitura prometeu a construção de nove casas. As obras de infraestrutura foram concluídas (abertura de estradas, água e saneamento), mas as casas ainda não saíram do papel. “Nos pegamos muitas vezes vociferando: como nove casas a gente leva nove anos para construir? Obviamente não é por falta de vontade”, afirma o diretor do Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre, Mário Marchesan.
Ele atribui a demora a entraves impostos pela legislação ambiental e à burocracia do programa de financiamento escolhido inicialmente, o Minha Casa Minha Vida – Entidades. Ainda na gestão anterior, a administração municipal decidiu fazer a obra com recursos próprios, ao custo de R$ 1 milhão. A primeira construtora contratada acabou falindo, e agora o departamento prepara uma nova licitação.
Há também iniciativas de apoio da sociedade civil. Um grupo de cinco jovens arquitetos de Porto Alegre tenta angariar fundos para construir um centro cultural na aldeia, adequado às celebrações da tribo e às frequentes visitas de estudantes de escolas da capital gaúcha. “O desenvolvimento do projeto foi feito com a participação dos indígenas, para que fosse condizente com a história e memória do povo charrua”, explica Carolina Bins Ely, uma das profissionais envolvidas. O grupo criou uma página no Instagram (@aldeiapolidoro) para ajudar a atrair recursos para a construção do centro cultural.
Cacica-geral Acuab com filho, Cacique Guaiamá, na aldeia Polidoro
A luta dos charrua no Uruguai
A luta por reconhecimento e resgate da história do povo ocorre também fora do Brasil. Mónica Michelena Diaz tinha 18 anos quando descobriu que era descendente de charrua. Sua bisavó nascera em Sarandí del Yi, na região central do Uruguai, onde vivia da caça e da pesca. “Minha mãe sempre tinha me ocultado que éramos descendentes dos charrua por causa da discriminação. Dizia que era para me proteger”.
Ela começou a pesquisar tudo sobre seus antepassados e descobriu como a cultura foi se perdendo pela perseguição dos espanhóis e a dispersão dos sobreviventes pelas estâncias: “Separavam as crianças das mães. Com isso morreu a língua e muitos costumes se perderam”.
Em 2005, Mónica, que é assessora de assuntos indígenas da Unidade Étnico Racial do Ministério de Relações Exteriores do Uruguai, ajudou a fundar o Conselho da Nação Charrua (Conacha). O primeiro passo foi uma campanha de estímulo à autoidentificação dos descendentes de charrua, com a inclusão da dimensão étnico-racial no censo demográfico de 2011 (5% da população uruguaia declarou ter ascendência indígena).
O Conacha pressiona o governo uruguaio a ratificar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que trata do reconhecimento e proteção dos povos indígenas, inclusive no que diz respeito ao direito à terra. Na América do Sul, apenas o Uruguai e o Suriname não ratificaram a convenção.
Os descendentes também lutam para recuperar sua memória. No ano passado, o Conacha criou uma escola itinerante para disseminar a cultura charrua, que também oferece cursos online. “A luta é pelo reconhecimento pelo Estado, pela retomada das terras e pela reconstrução da memória e da percepção como povo. Somos uma comunidade em dispersão por conta de um genocídio e da perseguição”, define Mónica.
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