Quando o candidato eleito Jair Bolsonaro (PSL) assumir a Presidência, os processos em que é réu serão suspensos, seguindo uma norma da Constituição brasileira.
O capitão reformado é réu em duas ações penais no Supremo Tribunal Federal, ambas por ter dito à deputada Maria do Rosário (PT-RS) na Câmara e em entrevista a um jornal, em 2014, que não a estupraria porque ela “não merecia”. No mesmo ano, em entrevista ao “Zero Hora”, Bolsonaro disse que sua fala foi “uma ironia naquele momento”. Em 2016, disse que “foi uma retorsão”, “um ato-reflexo”.
Por suas declarações, ele é acusado de incitação ao crime de estupro e injúria, quando a honra de alguém é ofendida. O relator do processo no STF é o ministro Luiz Fux. A ação penal foi aberta após denúncia da Procuradoria-Geral da República e da deputada.
Segundo a Constituição brasileira, “o Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”.
Isso significa que os processos de Bolsonaro anteriores à Presidência só poderão ser solucionados pela Justiça depois que ele deixar o cargo de presidente. É uma espécie de imunidade processual conferida a quem ocupa o cargo em relação aos processos anteriores a seu mandato.
O presidente também goza de foro privilegiado, condição que se refere à instância da Justiça em que pode ser processado e julgado. No caso da Presidência, compete ao Senado ou ao Supremo Tribunal Federal julgar o mandatário.
O que aconteceria se Bolsonaro fosse condenado?
A Constituição estabelece que um candidato com condenação criminal transitada em julgado perde direitos políticos. E para ser eleito, um candidato precisa tê-los.
Então, se Bolsonaro fosse condenado e o processo transitasse em julgado (ou seja, se a condenação fosse confirmada após possíveis recursos) antes da posse, Bolsonaro poderia estar com direitos políticos suspensos, o que impediria sua posse, segundo a professora da FGV Direito de São Paulo, Eloisa Machado. Ela é coordenadora do projeto Supremo em Pauta, que monitora as ações do STF.
Vera Chemin, advogada constitucionalista com mestrado em adminsitração pública na FGV, tem outra avaliação: a ineligibilidade da Constituição, para ela, não considera crimes definidos em lei como de menor potencial ofensivo, como são os de apologia ao crime e o de injúria, segundo a Lei da Ficha Limpa estabelece.
Já Machado diz que “a interpretação que vigora é a de que a Constituição não estabelece diferença entre crimes”.
Gabriela Rollemberg, vice-presidente da comissão de direito eleitoral da OAB Nacional, concorda com Machado: a suspensão de direitos políticos acontece independente do crime.
Mas Bolsonaro só poderia ser considerado inelegível até a data da eleição. Numa hipótese “absolutamente improvável” disso acontecer, diz ela, teria de ser por meio de um recurso contra a expedição do diploma de Bolsonaro até três dias depois de sua diplomação, em dezembro.
Mas dá tempo de concluir o processo antes da posse?
De qualquer forma, daria para concluir o processo até o fim do ano, antes da posse de Bolsonaro?
Faltam o interrogatório de Bolsonaro, que deveria ser marcado pelo ministro Luiz Fux, e as últimas alegações das partes. Depois, sobrariam ainda a conclusão do voto de Fux, seu encaminhamento a outros ministros e a definição da data do julgamento.
Testemunhas já haviam sido ouvidas. No fim de agosto, os deputados Pastor Eurico (Patri-PE) e Onyx Lorenzoni (DEM-RS) foram ao Supremo Tribunal Federal (STF) testemunhar sobre o caso.
“É muito difícil encontrar um padrão temporal de julgamento no Supremo. Tem casos que são rápidos e casos demoradíssimos”, diz Eloisa Machado, da FGV. Mas o caso de Bolsonaro, na opinião dela, é um “relativamente simples”. “Não é um caso da Operação Lava Jato, que envolve processos complexos de lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio.”
“Dada a simplicidade do caso, não tenho a menor dúvida de que esse caso, que tramita há quatro anos, já poderia ter sido resolvido no Supremo”, diz. Nas instâncias ordinárias da Justiça, lembra ela, casos assim têm conclusão rápida. “Tanto o que o Supremo julga, quanto o que o Supremo não julga são temas importantes”, diz ela. E ambos, afirma, devem ser observados.
Para ela, dá tempo de julgar o processo antes da posse. “Mas não sei se eventualmente promover esse julgamento agora não traria ainda mais instabilidade para o cenário político.”
Na avaliação de Pierpaolo Bottini, advogado e professor de direito penal da USP, não há tempo hábil. “Teriam que ouvir o Bolsonaro, depois ele pode pedir mais alguns documentos na fase final, e ainda alegações finais”, afirma. “E há o recesso no meio de dezembro.”
Para Vera Chemin, advogada constitucionalista com mestrado em administração pública na FGV, de qualquer forma, “por uma questão de se manter a estabilidade política, ele não deverá ser condenado antes da posse”. “Desse modo, depois que ele assumir, o processo será suspenso.”
Questionado via assessoria de imprensa, o Supremo Tribunal Federal não respondeu sobre o estágio do processo e a possibilidade de ser concluído.
A defesa da deputada Maria do Rosário ainda não se pronunciou sobre o caso.
E durante o mandato?
Situação hipotética: Bolsonaro repete a frase que disse para a deputada Maria do Rosário, só que agora como presidente. O que pode acontecer?
Um presidente só pode ser julgado por uma ação penal comum se tivê-la cometido durante o mandato e se o ato for de alguma forma relacionado ao cargo que ocupa, explica Daniel Falcão, advogado e professor de direito constitucional no IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público).
“Se ele está falando durante um discurso ou durante uma palestra, por exemplo, está falando como presidente da República. Se ele bate o carro e xinga uma pessoa, não está exercendo o cargo de presidente”, opina Falcão. “Essa é a dúvida – tem gente que considera que ele é presidente 24 horas por dia.”
Segundo Chemin, para serem considerados, os atos têm de ser cometidos publicamente ou “que repercutam nacionalmente”, desconectados da vida privada.
Dessa forma, de acordo com essa interpretação, Bolsonaro poderia, sim, ser denunciado durante o mandato se repetisse a frase para a deputada.
Se isso ou algo semelhante acontecer, caberá a Procuradoria-Geral da República ou a qualquer cidadão, por meio do Ministério Público, apresentar uma denúncia ao Supremo Tribunal Federal. Mas o Supremo precisaria de autorização da Câmara, com dois terços dos votos, para dar prosseguimento à ação.
O outro tipo de processo que um presidente pode enfrentar é o de crime de responsabilidade – como aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em um processo que culminou com seu impeachment.
Machado, da FGV, lembra que falas discriminatórias, misóginas, racistas, entre outras, também podem levar a processos por crime de responsabilidade, por atentado a direitos fundamentais. A Constituição estabelece que “são crimes de responsabilidade os atos do presidente” que atentem contra a Constituição, “especialmente contra”, entre outros, “o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”.
Nesse caso, quem julga o processo, após aprovação da Câmara, é o Senado.
E o que acontece depois?
O atual presidente, Michel Temer (PMDB), “escapou” de seus processos porque a Câmara rejeitou duas denúncias criminais, com acusações de obstrução de Justiça e organização criminosa, contra o presidente. Quando deixar o cargo, em janeiro, esses processos deverão ser retomados e Temer deverá ser réu. Ele nega qualquer irregularidade.
O mesmo acontecerá com Bolsonaro: quando deixar a Presidência, a ordem natural é que seus processos sejam retomados. Sem cargo público, perde-se o foro privilegiado.
Com isso, é possível que o processo vá para as instâncias ordinárias.
Depende, de acordo com o entendimento do Supremo, do estágio do processo. O tribunal decidiu que processos assim ficariam no STF somente se estiverem na fase das alegações finais.
Dado o estágio avançado, na avaliação de Chemin, dos processos de Bolsonaro – ele ainda precisa ser ouvido, antes das alegações finais -, ela avalia que ficarão na corte.
Para Machado, o processo já poderia ter ido para instâncias ordinárias, já que o Supremo, quando aceitou a denúncia e transformou Bolsonaro em réu, decidiu que o crime não estava atrelado à função parlamentar. Ou seja, o então deputado não estaria protegido pela imunidade parlamentar – e não tinha, nesse caso, foro privilegiado.
O STF rejeito neste ano uma denúncia contra Bolsonaro sob acusação de racismo. Em 2017, ele afirmou, durante um discurso no Clube Hebraica, no Rio, que afrodescendentes “nem para procriador” serviam. “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas (medida para pesar gado). Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles.”
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