A pouco menos de um mês para o início da reunião de cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec), em Santiago, na qual líderes como o chinês Xi Jinping e o russo Vladimir Putin já confirmaram presença, a situação política e social no Chile está longe de ser calma.
Desde as primeiras manifestações contra o aumento da passagem de metrô na capital, que começaram na segunda-feira (14/10), os eventos avançaram a uma velocidade vertiginosa. O bilhete aumentou de um valor equivalente a 1,12 dólar para 1,16 dólar, mas a medida não foi suficiente para arrefecer os protestos, que ganharam novas demandas.
O descontentamento se traduziu em panelaços, saques, destruição de estações de trens metropolitanos e queimas de ônibus, supermercados e outros edifícios na capital – ações que logo se espalharam para outras partes do país.
O governo chileno afirmou que “criminosos” são responsáveis pelos protestos violentos que já causaram 11 mortes. O presidente Sebastián Piñera decretou estado de emergência, que se transformou em um toque de recolher – medidas que não eram vistas desde o retorno à democracia, com o fim da ditadura de Augusto Pinochet, em 1990, salvo em casos de catástrofes naturais. E essas medidas apenas agravaram a situação.
Piñera afirmou na noite deste domingo (20/10) que o país está “em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita ninguém e está disposto a usar a violência e a deliquência sem limite algum”.
O governo mantém em estado de emergência, totalmente ou parcialmente, dez das 16 regiões do país: a região metropolitana de Santiago, Antofagasta, Coquimbo, Valparaíso, Maule, Concepción, Bío Bío, O’Higgings, Magallanes e Los Ríos.
No fim de semana, estações de metrô foram fechadas em Santiago e Valparaíso, havia pouco transporte coletivo à disposição da população, supermercados não abriram, e em algumas áreas as aulas foram suspensas. Ao se procurar exemplos desse tipo de desordem, o caos vivido após o terremoto de 27 de fevereiro de 2010 é o único antecedente que pode ser encontrado nos últimos 25 anos.
“O governo, em vez de expressar empatia, baseia sua resposta em uma ‘mão dura’ que nega o sofrimento e as exigências justas da população”, afirma o sociólogo Jorge Saavedra, da Universidade de Cambridge. Para ele, essa atitude se arrasta há muito tempo e tem sido, em parte, responsável pelo descontentamento dos cidadãos.
Saavedra critica ainda declarações de ministros “menosprezando as pessoas e seu sofrimento” – por exemplo, quando lhes dizem que esperar longas horas na fila da saúde pública é uma oportunidade de convivência social. “Essas declarações são sinal do desdém de um governo que não tem habilidade de comunicação para mostrar empatia por quem vive um momento ruim.”
“Um povo maltratado que se cansou”
Mas como explicar essa explosão num país que mostra números macroeconômicos positivos e é frequentemente visto como um lugar tranquilo? Há uma semana, o próprio presidente Piñera afirmou que o Chile era um “oásis” na América Latina.
“Não é prudente cuspir em direção ao céu, especialmente quando há fraturas sociais escondidas que não foram processadas corretamente”, afirma o analista político Cristóbal Bellolio, doutor em filosofia política pela University College London (UCL).
Essas fraturas têm a ver com uma qualidade de vida que geralmente está acima das possibilidades das pessoas. “Nós, chilenos, estamos pagando por serviços mais caros do que nossos bolsos nos permitem pagar”, explica Bellolio.
“Quando o Chile tem sua imagem arranhada, fica em evidência uma enorme injustiça social, cultural, econômica e política. A boa imagem foi sustentada sobre pilares fracos que se apoiavam, em grande medida, na paciência de um povo maltratado que se cansou”, completa Saavedra.
O aumento do preço da passagem de metrô foi apenas o estopim, em um país onde os serviços básicos estão sendo privatizados, a previdência social é precária e um amplo setor da população está descontente com os privilégios de alguns setores da sociedade.
“O que começou contra o aumento da passagem passou a ter uma maior articulação discursiva quando se apresentou como um repúdio generalizado ao aumento sistemático do custo de vida”, afirma Bellolio.
Para o especialista, as demandas sociais poderão ser afetadas pela violência dos protestos. “Os movimentos sociais têm suas demandas tratadas pelas autoridades na medida em que gozam de simpatia pública. E se incendiarmos as estações de metrô e supermercados, que são a fonte de emprego daqueles que vivem ao nosso redor, as pessoas ficam cansadas dos protestos”, diz.
As autoridades não sabem ao certo quem está por trás dos atos de destruição. Suspeita-se de grupos anarquistas ou setores marginalizados da sociedade, embora existam criminosos que tiram proveito dessas situações para cometer delitos, destruindo a infraestrutura essencial para o funcionamento normal da cidade.
O metrô estima em 300 milhões de dólares os danos sofridos em quase 100 estações que foram incendiadas ou roubadas. A linha 4 ficará fora de operação por pelo menos quatro meses.
“Reação do governo tem sido incompetente”
Em programas políticos de televisão e análises da imprensa chilena, muitos se perguntam por que o governo demorou tanto tempo para reagir e por que o presidente Piñera tem estado tão ausente, com apenas uma brevíssima aparição pública neste fim de semana em meio à crise.
“Acredito que o governo entregou rapidamente o controle aos militares porque nunca teve o controle da situação. O que aconteceu não se via há mais de cinco décadas no Chile”, afirma Saavedra, que enxerga um futuro muito difícil para um governo que está somente há 19 meses no poder.
Para o especialista, “é difícil pensar em como eles poderão retomar o controle ou como serão capazes de dar alguma direção para a demanda dos cidadãos”.
Bellolio, por sua vez, afirma que o governo tem atuado de maneira muito desajeitada: limitou o problema a uma questão de ordem pública e perdeu uma oportunidade de ouro. “Quando Piñera anunciou o congelamento da tarifa do metrô no sábado, já era tarde demais.”
O analista opina que a atuação do governo tem sido incompetente, negligente e ausente – e que a entrega do controle aos militares é um sinal disso. “Nessas circunstâncias, o Chile será capaz de organizar a reunião de cúpula da Apec?”
Bellolio duvida disso. “Não sabemos se essa violência é uma expressão catártica que morreu aqui ou se há células preparando mais protestos. Se o governo reagir agora, poderá ter a oportunidade de salvar a reunião de cúpula”, completa.