Quando Donald Trump parabenizou Jair Bolsonaro por seu discurso de posse como presidente do Brasil, em 1º de janeiro, dizendo a ele que “os EUA estão com você!”, o analista internacional Richard N. Haass comentou, via Twitter:
“O aceno de Donald Trump a Jair Bolsonaro é consistente com seu abraço a (o russo Vladimir) Putin, (o turco Recep Tayyip) Erdogan, (o filipino Rodrigo) Duterte etc e seu distanciamento de (Angela) Merkel, (Emmanuel) Macron, (Theresa) May etc. A política externa americana agora se alinha com um Eixo do Iliberalismo”.
Haass é presidente do influente Council on Foreign Relations, principal centro de estudos de política externa americana e referência nos EUA em formulação de políticas e debates sobre questões internacionais. Seus comentários, portanto, reverberam entre a comunidade internacional.
Em que consistiria, então, esse possível novo eixo global — e quais suas implicações?
“Olhando para Bolsonaro, seu histórico, sua campanha e seus primeiros dias de governo, há tendências preocupantes que ele compartilha com muitos outros líderes populistas e nacionalistas de direita ao redor do mundo, (em questões como) tratamento da imprensa, suas visão sobre líderes da oposição ou dos que estão fora de seus valores pessoais, mulheres, homossexuais, outros que tenham visões diferentes, fechamento de espaços para expressão e contestação e o modo personalista como ele e sua família conduzem as coisas”, afirma à BBC News Brasil Shannon O’Neil, vice-presidente e especialista em América Latina do mesmo Council on Foreign Relations.
“Ele está apenas começando, vamos ver se ele segue no que Richard (Haass) qualifica como Eixo do Iliberalismo, mas o modo como ele fala de governança e democracia é bem mais limitado do que (os presidentes) que o precederam.”
Para o cientista político brasileiro Carlos Pereira, no entanto, estamos longe do iliberalismo por aqui. “Nada sugere até agora que o Brasil passe por um momento em que as instituições ou o liberalismo estejam sob ameaça”, diz o professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da FGV. “O liberalismo é o respeito às regras do jogo e a qualidade da democracia. O que emerge é um governo conservador, legitimamente eleito. Ainda estamos no início, mas ele tem jogado as regras do jogo.”
O liberalismo — e a ausência dele
A ordem liberal mundial é definida internacionalmente como o conjunto de normas e alianças estabelecido pelos EUA e seus aliados após a Segunda Guerra Mundial (1939-45), incluindo a defesa dos direitos humanos e liberdades individuais, apoiando-se no multilateralismo (instituições como a ONU, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio) para a promoção da paz e de valores comuns, além do livre comércio mundial.
É claro que não funcionou tão bem quanto na teoria. Na prática, diversos regimes autoritários foram alçados ao poder no pós-guerra ao redor do mundo, muitas vezes com aval e amparo dos EUA – e comumente com casos flagrantes de desrespeito aos direitos humanos.
Mas especialistas afirmam que, de modo geral, o objetivo era impedir que se criassem as mesmas condições de tensão que levaram às duas grandes guerras mundiais. Sob essa ótica, a ordem liberal teria sido bem-sucedida. Pelo menos por algum tempo.
Em 1997, Fareed Zakaria, apresentador da emissora CNN e especialista em política doméstica e externa, escreveu no periódico Foreign Affairs sobre o que chamou de uma tendência “incomum”: ao mesmo tempo em que a democracia florescia no mundo – ou seja, mais eleições populares eram realizadas e mais ditaduras perdiam terreno -, alguns desses países democráticos tinham cada vez menos apreço pelo “Estado de Direito, respeito a minorias, liberdade de imprensa”.
Foi uma das primeiras menções ao que passou a ser chamado de “iliberalismo”.
Segundo essa teoria, essas “democracias iliberais” continuam de modo geral realizando eleições e respeitando suas Constituições e o resultado das urnas, mas com um caráter mais populista e nacionalista que, para críticos, enfraquece as liberdades individuais, a defesa de minorias, a liberdade de imprensa, o bem comum e a integração internacional (ou seja, o multilateralismo).
Chanceler Ernesto Araújo (acima com o secretário de Estado americano Mike Pompeo, em Brasília, em 2 de janeiro) é forte crítico do ‘globalismo’
“Essas liberdades individuais eram protegidas não apenas do abuso de tiranos, mas também das maiorias democráticas”, escreveu Zakaria em artigo posterior sobre o tema. “Em (muitos) países, o rico e variado recheio da democracia liberal está se esvaindo, deixando apenas a casca democrática por fora.”
Algumas condições internacionais criaram terreno para isso: a crise internacional de 2008 e as medidas de austeridade que se seguiram a ela tiveram um duro impacto na vida da população de países europeus, por exemplo. Efeito semelhante foi sentido após a crise econômica brasileira.
A ascensão de grupos extremistas e de facções criminosas também aumentou a sensação de insegurança e, em alguns casos, uma desconfiança com relação à imigração.
E, no mundo inteiro, cresceu a rejeição das pessoas aos partidos políticos – com a percepção de que essa e outras instituições simplesmente deixaram de representá-las.
“A eleição de Donald Trump à Casa Branca (em 2016) foi a mais impressionante manifestação da crise da democracia”, apontou no ano passado, em artigo no jornal britânico Guardian, o pesquisador Yascha Mounk, autor do livro The People vs. Democracy: Why Our Freedom is in Danger and How to Save it (“O povo contra a democracia: por que nossa liberdade está em perigo e como salvá-la”, em tradução livre) e estudioso de regimes populistas.
“É difícil exagerar a importância dessa ascensão. Mas não é de forma alguma um incidente isolado. Na Rússia e na Turquia, homens fortes eleitos nas urnas (em referência a Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan) foram bem-sucedidos em tornar democracias novatas em ditaduras eleitorais. Na Polônia e na Hungria, líderes populistas estão usando essa mesma cartilha para destruir a imprensa livre, minar instituições independentes e amordaçar a oposição.”
Orbán: ‘Abordagem nacional’
O conceito de iliberalismo foi apropriado a seu modo por um dos “expoentes” desse novo possível eixo: Viktor Orbán, premiê da Hungria desde 2010, que veio a Brasília para a posse de Bolsonaro e foi um dos primeiros líderes internacionais a se aproximar do novo presidente brasileiro.
Ascensão de Trump é apontada por autor como marco da ascensão do iliberalismo
“O novo Estado que estamos construindo na Hungria é um Estado iliberal, um Estado não liberal”, declarou Orbán em um discurso de 2014. “Ele não rejeita os princípios fundamentais do liberalismo, como a liberdade, etc. Mas não faz dessa ideologia o elemento central da organização do Estado, mas em vez disso inclui uma abordagem diferente, especial e nacional.”
Ao mesmo tempo, Orbán é um líder polêmico. Nacionalista, ele é especialmente conhecido por sua dura oposição à entrada de imigrantes. “Não vemos essas pessoas como refugiados muçulmanos, mas sim como invasores muçulmanos”, ele já declarou sobre migrantes, agregando que o “multiculturalismo é apenas uma ilusão”. Ele também já qualificou a imigração de “veneno”.
Em setembro passado, o Parlamento Europeu abriu um processo disciplinar contra a Hungria por “ataques ao Estado de Direito, à imprensa e a minorias”. O relatório aprovado no Parlamento, que acusa o governo húngaro de “claras violações aos valores” da União Europeia, pode, em última instância, levar à suspensão do poder de voto da Hungria no Conselho Europeu.
Embora os líderes citados acima sejam identificados com a direita, o iliberalismo abarca os dois espectros ideológicos, diz Shannon O’Neil.
“(Esses líderes) elevam o aspecto nacionalista da democracia e sua própria agenda, sendo ela muito mais socialmente conservadora. Mas se olharmos para o mundo atual, há muitos à direita, como Bolsonaro, mas há alguns também à esquerda. A ideologia pode ser diferente, mas por baixo estão a dinamitação de instituições e da liberdade de expressão, críticas acima da média à imprensa. É nisso que consiste esse iliberalismo – menos as ideias, e mais a forma como os líderes agem a respeito delas”, diz a analista à BBC News Brasil.
Países como Venezuela e Bolívia são casos de guinadas iliberais à esquerda, afirma Carlos Pereira – o primeiro, pelo enfraquecimento das instituições sob o governo Nicolás Maduro e o segundo, pelas manobras de Evo Morales para candidatar-se pela quarta vez à Presidência, dificultando a alternância de poder.
A Turquia, sob Recep Tayyip Erdogan, é considerada um dos exemplos mais preocupantes pelos analistas, “porque o Estado descarrilou: a mídia é completamente cerceada e opositores estão sendo detidos por razões políticas, sem que seus familiares sequer tenham acesso a eles”, diz o cientista político brasileiro.
E quanto ao Brasil?
O novo ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, é um forte crítico do “globalismo” na política externa. Em seu discurso inaugural como chanceler, Araújo disse que o governo pretende “libertar o Brasil…com a verdade” e mencionou EUA e Hungria entre os países que admira, destacando a retórica nacionalista de seus líderes.
Sobre realinhamento a novos “eixos”, porém, o Itamaraty afirma à reportagem que o chanceler Araújo tem destacado que o Brasil está, no novo governo, “se realinhando consigo mesmo e com seus próprios valores”.
Para Shannon O’Neil, do Council on Foreign Relations, a política externa brasileira será palco de uma “espécie de batalha”.
Ordem liberal mundial foi criada após a Segunda Guerra; acima, soldados britânicos na Normandia, no dia D
“Ele (Araújo) rejeita o globalismo e a ordem global, enquanto Paulo Guedes (ministro da Economia) diz que quer acordos de livre-comércio com outros países e abertura do Brasil”, diz ela.
“A visão do chanceler é a isolacionista, de recuo, de ‘não seremos mais parte disso’. Já a de Guedes é de que ‘somos sim parte disso e queremos nos engajar com o mundo’, talvez se afastando do Mercosul para se unir a outros países. Não sei quem vai vencer, mas a visão de Paulo Guedes depende da ordem global.”
Mais pistas sobre como se dará, na prática, a atuação brasileira no exterior provavelmente serão dadas na próxima semana, quando Jair Bolsonaro terá seu primeiro compromisso internacional, no Fórum Econômico Mundial, de Davos (Suíça). Por enquanto, tem prevalecido a ideia de abertura ao mundo, segundo o próprio Bolsonaro.
“Mostrarei nosso desejo de fazer comércio com o mundo todo, prezando pela liberdade econômica, acordos bilaterais e saúde fiscal”, afirmou o presidente pelas redes sociais. “Com esses pilares, o Brasil caminhará na direção do pleno emprego e da prosperidade.”
Em termos comerciais, O’Neil opina que uma abertura para novos mercados pode trazer vantagens para o Brasil sob o novo governo.
“O Brasil não é muito produtivo e não cresce tão rapidamente quanto poderia, e abrir-se para o mundo pode aumentar a produtividade. É algo sobre o que pelo menos esse governo está conversando. A China é o maior parceiro comercial do país, mas compra em geral commodities, e não produtos de valor agregado ou diversificados. O Brasil precisa crescer e encontrar (mercados) para produtos de valor agregado, para aumentar os salários e a prosperidade do trabalhador médio e mudar sua economia. Acho que abrir-se para o comércio e engajar-se com mais países do mundo beneficiaria o Brasil. Esse é um ponto para otimismo no novo governo.”
Já do ponto de vista das instituições democráticas, O’Neil acredita que o Brasil tem um sistema de fiscalização maior entre os Poderes do que outros países emergentes. Mas ainda assim vê riscos.
“Acho que o Brasil tem um sistema de pesos e contrapesos mais forte do que países como Turquia ou Rússia – um sistema judicial forte, como vimos nos últimos anos com a (operação) Lava Jato, um Legislativo algo ruim, mas forte. A questão é que, se o estilo de campanha (de Bolsonaro) se converter em seu estilo de governo, assim como tem sido, por exemplo, nos EUA, acho que haverá (limitações) para as instituições brasileiras.”
Na opinião de Carlos Pereira, é justamente esse sistema de pesos e contrapesos que tem garantido que o país continue plenamente liberal.
“A imprensa brasileira continua combativa, e o Brasil dispõe de instituições fortes de controle, como um Ministério Público independente, Judiciário forte, uma Polícia Federal com autonomia operacional. Opinar que há riscos (à democracia) apenas pela emergência de um grupo que não é de esquerda é pura ideologia. As chances de iliberalismo são maiores em países em que o presidente usurpa o poder do Congresso. Aqui, o presidente tem grandes poderes (de editar decretos e medidas provisórias) por delegação do Congresso, pela Constituição de 1988”, opina.
Mas Pereira ressalta, também, a retórica com “sinais iliberais muito ruins” adotada por Bolsonaro em momentos de campanha à Presidência – por exemplo, quando o então candidato falou que iria “varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil”.
Pereira lembra também a retórica “iliberal” de Donald Trump nos EUA, de combate à imprensa e à imigração e de defesa ao protecionismo. “Apesar dessa retórica, as instituições americanas estão aí, fortes, constrangendo o presidente. O país continua sendo liberal, a despeito do presidente”, diz o analista.
Novas rupturas vêm aí
Para analista, comércio do Brasil pode se beneficiar da visão mais liberal da equipe econômica do novo governo
Em âmbito global, porém, alguns analistas já têm decretado o “fim” da ordem liberal mundial iniciada no pós-guerra.
“O liberalismo está em recuo. As democracias estão sentindo os efeitos do populismo. Partidos dos extremos políticos ganharam espaço na Europa. O voto do Reino Unido em favor da saída da União Europeia atesta a perda da influência da elite. Até os EUA estão experimentando ataques sem precedentes de seu próprio presidente à imprensa, Justiça e instituições de emprego da lei do país. Sistemas autoritários, incluindo China, Rússia e Turquia, se tornaram mais fortes”, escreveu em março de 2018 Richard Haass, autor do tuíte que abre esta reportagem – e que destaca o papel de Trump nisso.
“A decisão dos EUA em abandonar o papel (de promotor da ordem liberal global) que teve por muitas décadas marca um ponto de virada. A ordem liberal mundial não sobrevive por si só, porque outros não têm o interesse ou os meios para sustentá-la. O resultado será um mundo menos livre, menos próspero e menos pacífico, para americanos e para outros”, opinou.
Para Shannon O’Neil, novas rupturas – sobretudo as causadas pela automação de postos de trabalho e pelas mudanças climáticas – ainda vão bagunçar mais o cenário internacional nas próximas décadas. A dúvida é quais forças vão emergir disso.
“A incerteza que isso cria para as pessoas comuns também causará incerteza no cenário político. Será que os líderes que vão emergir serão de esquerda ou de direita, terão alguma base religiosa? É difícil dizer. Mas acho que continuaremos a ver turbulências. Mudanças políticas e turbulências não são algo novo, a diferença é que vínhamos de mais de 30 anos de expansão da democracia ao redor do mundo. (…) O que temos visto (até agora) é um recuo no interesse de pensar juntos soluções para os problemas globais. Muitos estão mais focados internamente, em seus próprios países, em vez de buscar liderança ao redor do mundo em problemas multilaterais. Essa é uma das maiores mudanças.” fonte BBC.