“Não quero mais arriscar a minha vida aqui”, diz Valéria (nome
fictício), que fugiu da crise na Venezuela há quatro meses para tentar
recomeçar a vida no Brasil. “É lamentável. Mas prefiro voltar para os
problemas de lá do que viver assustada e com medo de ser atacada aqui”,
afirma a venezuelana à BBC News Brasil, pedindo para não ser
identificada.
Valéria decidiu deixar o Brasil após o linchamento, na quinta-feira
passada, de seu amigo e conterrâneo José Antonio González, de 21 anos,
em Boa Vista, capital de Roraima. Ele estava em um mercado e foi acusado
de ter furtado itens das prateleiras, num episódio que resultou em uma
dupla tragédia, com sua morte e a do brasileiro Manoel Siqueira de
Sousa.
Às vésperas da eleição, Roraima infla crise de venezuelanos
Sob gritos de “pega, ladrão!”, o venezuelano saiu correndo e foi
perseguido por um grupo de brasileiros. Manoel Siqueira de Sousa, que
estava de bicicleta, conseguiu alcançá-lo e, segundo a Polícia Civil de
Roraima, tentou imobilizar o venezuelano. González sacou uma faca e
golpeou Manoel no pescoço, ferindo-o fatalmente.
Uma multidão revoltada espancou o venezuelano até a morte, e depois
arrastou seu corpo até a frente do acampamento onde vivia – um conjunto
de barracas precárias ao lado de um dos abrigos para venezuelanos em Boa
Vista, o Jardim Floresta.
Mais de 75 mil venezuelanos procuraram a PF em RR regularizar sua situação desde 2015
O episódio voltou a aumentar a tensão entre brasileiros e venezuelanos
em Roraima, apenas três semanas após os ataques de moradores de
Pacaraima a acampamentos formados pelos estrangeiros nas ruas da cidade,
precipitado pelo assalto e espancamento de um comerciante por um grupo
de imigrantes.
A cidade fronteiriça é porta de entrada para os migrantes que chegam ao
Brasil por terra. De acordo com a Polícia Federal, de 2015 até agosto
deste ano, mais de 75 mil venezuelanos procuraram a Polícia Federal em
Roraima para regularizar sua situação migratória no Brasil, com pedidos
de refúgio ou residência.
Segunda fuga
Assim como em Pacaraima, onde a violência levou mais de mil imigrantes a
cruzarem a fronteira de volta para o país vizinho, o temor gerado pelo
linchamento em Boa Vista levou novas levas de imigrantes a retornarem.
No fim de semana, quatro ônibus enviados a Roraima por uma igreja
evangélica de Caracas deixaram a cidade com mais de 200 venezuelanos que
viviam no entorno e dentro do abrigo Jardim Floresta, e deixaram o
local em meio à tensão.
Para venezuelanos em êxodo, Brasil não está em crise econômica
“As pessoas foram embora muito assustadas, chorando muito. Foram por
medo. Não era o que queriam fazer. Era o que viram como alternativa”,
conta a Irmã Telma Lage, coordenadora do Centro de Migrações e Direitos
Humanos da Diocese de Roraima (CMDH), que atende venezuelanos que chegam
ao Estado desde 2015.
“Todo mundo ficou com o coração partido de vê-los sair”, relata.
Governo enviou reforços da Força de Segurança Nacional para Roraima
Após a violência em Pacaraima, o governo enviou reforços da Força
Nacional para Roraima e publicou um decreto de Garantia de Lei e da
Ordem (GLO) autorizando a atuação do Exército na segurança pública da
fronteira e da capital. Nesta semana, novo decreto estendeu o prazo para
permanência das tropas até dia 30 de outubro.
Enquanto isso, o governo de Nicolás Maduro vem fazendo pronunciamentos
conclamando venezuelanos a retornarem ao país e afirmando que estão
deixando a Venezuela para serem “humilhados”.
De acordo com uma venezuelana recém-chegada ao Brasil, tem se
disseminado entre os imigrantes em Roraima a informação de que o governo
chavista está oferecendo incentivos. A BBC News Brasil não conseguiu
contato com a Embaixada da Venezuela em Brasília nem com o Consulado em
Boa Vista para confirmar a informação.
Planos frustrados de uma vida melhor
Valéria contesta a versão de que o amigo estivesse roubando e cobra
evidências em vídeo. “Há venezuelanos que vieram roubar, mas ele não
estava roubando”, afirma. “Ele foi comprar pão, e ainda tentou mostrar o
recibo quando começaram a acusá-lo.”
“Não é justo. Viemos para cá atrás de uma vida melhor, para ajudar
nossas famílias, e acabamos pagando pelos erros que alguns cometem”,
lamenta.
Segundo Valéria, José Antonio chegara ao Brasil havia oito meses
buscando trabalho para enviar dinheiro para que a mãe, doente, pudesse
comprar comida e medicamentos na Venezuela. Vinha fazendo serviços de
jardinagem e morava na rua, no aglomerado de barracas formado no entorno
do abrigo. Ela o descreve como um rapaz amigável, prestativo. “Sempre
que lhe pediam ajuda ele atendia. Ele era um menino, não merecia essa
morte.”
Brasileiros fizeram protestos e até queimaram objetos de venezuelanos
Ela própria chegou ao Brasil há quatro meses, pelo mesmo motivo que
“todos os venezuelanos”, segundo diz: fugir da situação de seu país,
buscar uma melhor qualidade de vida para sua família e ganhar dinheiro
para mandar para casa, ajudando os parentes que ficaram.
Segundo a agência da ONU para Migrações, 2,3 milhões de venezuelanos já
deixaram o país, fugindo de uma inflação fora de controle e da falta de
alimentos, remédios e produtos básicos.
Valéria vinha conseguindo reconstruir a vida aqui, ganhando diárias
como faxineira e vivendo de aluguel com a filha e o marido. Chocada após
a morte do amigo, está arrumando as malas para voltar. Já não tem
coragem de mandar a filha para a escola, com medo de represálias, e está
sempre na expectativa de poder ser “atacada e golpeada” apenas por ser
venezuelana.
“Estamos todos aterrorizados de que aconteça algo”, diz.
Comoção por brasileiro ‘querido por todos’
A Polícia Civil de Roraima abriu dois inquéritos para apurar as
circunstâncias de morte do brasileiro e do venezuelano. Em nota,
transmite a versão da proprietária do mercado, que teria visto o
venezuelano “pegando vários produtos das prateleiras e saindo sem
pagar”.
Venezuelanos são suspeitos em 56% dos crimes em Pacaraima (RR)
A polícia acrescenta que as investigações iniciais do episódio “revelam
que são muito comuns furtos nos supermercados daquela região praticados
por venezuelanos e que após a criação do abrigo naquela área dos crimes
desta natureza aumentaram exponencialmente”, sem, no entanto, amparar a
informação em estatísticas.
Manoel de Sousa, de 35 anos, conhecido como Manel ou Manelzinho, era o
caçula de seis irmãos e ganhava a vida como pintor. Sua cunhada, a
faxineira Ana Cristina Coelho de Freitas, de 44 anos, afirma que quando
ele derrubou o venezuelano, caíram no chão os itens que ele teria
roubado do mercado: uma sacola de pão e duas latas de leite condensado.
Ela diz que Manoel morava na mesma rua do mercado, em uma casa simples
com quintal aberto e um banheiro do lado de fora, e costumava ajudar
venezuelanos que viviam nos arredores. Deixava tomarem banho no banheiro
externo, descansarem sob a sombra de sua mangueira e oferecia água
gelada.
“Ele tinha pena, né? Ajudava eles demais e acabou sendo morto pelo
venezuelano. Acabou indo embora. Tomamos um choque. Ele era querido pelo
bairro todo”, diz Cristina.
“E aí a população foi para cima e deu em cima do venezuelano. Eram mais
de 20. O venezuelano não deveria ter matado o meu cunhado, nem ninguém
deveria ter matado o venezuelano. Todos nós somos seres humanos”, diz.
A família vai participar de uma manifestação convocada para o próximo domingo pedindo um fim à violência em Boa Vista.
Tensão acirrada após mortes
Segundo a Irmã Telma Lage, os dias seguintes às duas mortes foram de
muita tensão no acampamento em volta do abrigo Jardim Floresta, onde
José Antonio vivia.
Na madrugada de sexta para sábado, venezuelanos relataram que o
acampamento foi atacado, e Irmã Telma reforça a versão, afirmando que
uma moto passou pelo local fazendo disparos contra as barracas. A tensão
continuou a aumentar no sábado, com a comoção gerada pelo enterro de
Manoel de Sousa. Após o cortejo, ela diz que um grupo de brasileiros fez
um protesto em frente ao abrigo.
“Gritavam ‘assassinos!’ ‘justiça!’, dirigindo-se às pessoas no abrigo. É
claro que a situação é muito crítica, muito delicada, mas como podem
acusar ou pedir justiça àquelas pessoas? Não se pode condenar um povo
todo por causa de uma pessoa”, diz.
No fim de semana, ônibus enviados por igrejas da Venezuela chegaram à
região do acampamento de madrugada e saíram levando cerca de cem
pessoas, no sábado, e outras 104, no domingo. De acordo com o G1, os
veículos teriam sido fretados pelo governo Maduro.
Ao ver os ônibus partindo, Irmã Telma diz que a sensação é de que o
Brasil está falhando. “Quando não conseguimos garantir a segurança de
pessoas que estão sob a nossa tutela, o Brasil está falhando”, afirma.
Ela lembra que o Brasil não é o país que mais recebe venezuelanos,
estando longe de países como Colômbia, Peru e Equador. “Não estamos
fazendo o nosso dever de casa como país que acolhe”, considera.
O cientista político Bruno Magalhães, pesquisador de pós-doutorado no
Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, ressalta a importância
de se filtrar os números e não confundir o fluxo de entrada no país com o
número de pessoas que ficam.
A ONU estima que pelo menos 50 mil venezuelanos teriam se fixado no
Brasil até abril deste ano, o que representa 2% do êxodo do país. Mais
de 870 mil estariam na Colômbia, e cerca de 400 mil, no Peru.
Sobre os novos episódios de violência em Boa Vista, Magalhães destaca a
reação desmedida dos moradores, que não apenas lincharam José Antonio
González, como exibiram seu corpo diante do acampamento de venezuelanos,
em sinal de ameaça.
“Por que está ficando tão habitual usar qualquer fagulha para invadir abrigos e expulsar pessoas?”, questiona.
Para Magalhães, a situação pode estar relacionada a uma “xenofobia
latente” – em que a população se sentiria autorizada a cometer violência
contra imigrantes por causa de precedentes estabelecidos pelo Estado.
Ele lembra a tentativa da Polícia Federal de deportar 450 venezuelanos
do Brasil no fim de 2016, que acabou sendo impedida pela Justiça.
De janeiro a novembro daquele ano, entretanto, o órgão já deportara 445
venezuelanos “após cobrança da sociedade roraimense”, como noticiou à
época a DW Brasil. “Agora tivemos pessoas de Pacaraima expulsando
venezuelanos. De onde tiraram esse exemplo?”, pondera.
‘Fila anda’ com interiorização
Major Tássio de Oliveira, chefe da Comunicação da Operação Acolhida –
ação conjunta do governo federal, ONGs e organizações internacionais –
afirma que os episódios de violência causam preocupação. Mas diz que o
trabalho da Força Tarefa Humanitária não pode ser pautado pelo clima de
tensão.
Oliveira diz que duas linhas de ação prioritárias no momento convergem
para reduzir a vulnerabilidade dos imigrantes que têm vivido nas ruas. A
primeira é aumentar o número de vagas em abrigos, que de cerca de cinco
mil deve passar a 6.500 com a construção de dois novos espaços; e a
segunda é o foco na política de interiorização de venezuelanos para
outras regiões do país.
A recente onda de violência em Pacaraima levou o governo a acelerar os
planos. Até a semana passada, 1.507 venezuelanos foram transferidos para
outros Estados. Nesta semana, outros 392 seguem em dois voos para
cidades de Esteio e Canoas, no Rio Grande do Sul. À medida que esses
imigrantes deixam os abrigos, as vagas são liberadas para outros vivendo
nas ruas.
“Estamos trabalhando para dirimir os efeitos dessa crise humanitária,
principalmente em Roraima, que é o Estado mais afetado. É claro que não
vamos resolver os problemas em um passe de mágica, mas com planejamento e
organização a situação está melhorando aos poucos. Estamos tirando as
pessoas das ruas e obtendo resultados positivos com o processo de
interiorização. Continuamos trabalhando”, diz Oliveira.
Pablo Mattos, oficial de relações institucionais da Agência das Nações
Unidas para Refugiados (Acnur), em Roraima, diz lamentar o episódio de
violência e se solidarizar com as vítimas e seus familiares, mas afirma
que por ora não haverá mudanças na estratégia de ajuda humanitária em
Roraima.
“É difícil opinar porque cada pessoa tem sua razão específica para
retornar ou não (para o seu país). Claro que sempre há coisas que podem
ser melhoradas, mas a resposta brasileira tem sido um modelo de boa
prática para a região, tanto na fronteira e no acolhimento quanto na
interiorização”, considera.