Um estudo inédito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta que apenas cinco Estados do País têm controle da documentação pessoal das suas respectivas populações carcerárias. Segundo o presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ, ministro Dias Toffoli, 80% dos presos, calculados em 797 mil pessoas, não têm documentos básicos necessários para o exercício da cidadania.
O CNJ considera documentos básicos carteira de trabalho, registro de identidade, certidão de nascimento, título de eleitor e CPF. O Estado teve acesso a detalhes do levantamento, feito para subsidiar políticas públicas voltadas aos detentos.
A falta desses documentos, segundo o conselho, gera prejuízos aos presidiários. Sem CPF, por exemplo, mesmo que exista escola dentro da unidade penitenciária, o preso não consegue se matricular. A falta de RG impede a obtenção do cartão do Sistema Único de Saúde. E a carteira de trabalho é essencial para que o detento concilie uma atividade externa, enquanto estiver em regime semiaberto, o que dificulta a reinserção social.
Em evento público no fim de junho, realizado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Toffoli criticou a falta de conhecimento, por parte do Estado brasileiro, da população carcerária do País. “Pouco ou nada sabemos sobre essas pessoas. Quem são, de onde vêm, perfil e respectivas aptidões. Isso traduz o imenso desafio de levantarmos o véu da invisibilidade de quem está sob a custódia e a proteção do Estado. A maior parte delas não possui acesso a nenhum tipo documento pessoal, o que inviabiliza a fruição de direitos e aumenta a marginalização”, disse.
Na ocasião, o ministro assinou um termo de cooperação técnica entre o CNJ e o TSE para a construção de um banco de cadastramento biométrico e emissão de documentos da população carcerária dos 2.500 presídios do País.
“A superlotação do sistema carcerário brasileiro acarreta num contexto permanente de violação de direitos humanos. Trata-se de um contingente superlativo de pessoas já castigadas pela pobreza e pelo déficit de cidadania. Muitas vezes o preso passa anos no sistema prisional sem nem sequer uma documentação segura”, complementou Toffoli.
O ministro ressaltou que, ainda hoje, o número de presos que trabalham ou estudam não chega a 30% da população carcerária – segundo técnicos do CNJ, 15% estudam, e 17 % trabalham. “E eles têm o direito de exercer esse tipo de atividade, até porque isso faz parte da ressocialização e da reinserção do condenado na sociedade brasileira. Por tanto, o acesso à documentação civil é o caminho que antevemos para a sua cidadania.”
A emissão de documentos dos presos começa em janeiro, com ajuda dos cartórios nos Estados. Paralelamente, o CNJ vai iniciar um mutirão de cadastro biométrico da população carcerária. A previsão é de que tudo seja concluído até setembro.
Segundo o juiz coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do CNJ, Luís Geraldo Lanfredi, é nos Estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste onde a população carcerária mais sofre com a falta de documentos.
Serão duas formas de coleta biométricas. A primeira, nas varas de execução ou nas audiências de custódia. Para as pessoas que já estão recolhidas, haverá coleta nos estabelecimentos.
‘Quando ganhei meu benefício, cadê o RG?’
Estudante de Sociologia e assessor parlamentar na Câmara Distrital de Brasília, Emerson Franco não teria enfrentado tantas barreiras para estudar e trabalhar, dentro e fora do presídio, se não fosse a dificuldade de acesso à documentação na prisão. Hoje com 30 anos, após passar seis em regime fechado e mais um no semiaberto, o jovem se considera um vitorioso.
O último obstáculo foi conseguir deixar o presídio. A pena já tinha vencido, porém, o jovem não conseguiu ser solto, pois não tinha documento de identidade. “Demorei a vir para o semiaberto porque, quando ganhei meu benefício, cadê a minha identidade? Ela estava vencida, por erro na digital. Então, até eu conseguir tirar uma nova, foram mais de três meses, uma coisa que poderia ter sido resolvida lá dentro (do presídio). Demorou até me levarem escoltado até um cartório”, conta.
Outra dificuldade vivida na cadeia foi comprovar que tinha concluído o Ensino Médio. Depois que conseguiu, Franco voltou a estudar, dessa vez para passar no vestibular. Enquanto se preparava, alfabetizava outros presos . Por causa do empenho, foi acusado de motim. “Comecei a reunir a galera que queria estudar. Fui para o castigo por alfabetizar na cadeia. Passava 23 horas trancado”, lembra.
No fim de 2016, Franco deixou a prisão. Ele fora preso pelos crimes de assalto à mão armada, corrupção de menores, formação de quadrilha, tráfico de drogas, furto, desacato a autoridade e resistência a prisão e associação ao tráfico de drogas.
Virou palestrante. Em 2017 prestou o Enem e conseguiu bolsa de estudo para estudar licenciatura em Sociologia. “Hoje quero conversar e educar os tatuados, os considerados problemáticos, os vistos como loucos pela escola. Ensino a se posicionar, a ler Paulo Freire, a mostrar que o que vai mudar a vida deles é a educação”, afirma.
Franco diz que, na cadeia o chamado público dos sem-documento sãos os presos que vieram de outros Estados, geralmente em busca de trabalho, mas que se meteram no mundo do crime. “São os irmãos retirantes. Como a Defensoria Pública é sobrecarregada, eles passam todo o tempo de encarceramento sem documento.Tem gente que só quer estudar, mas não tem nenhum documento. Tem gente que está com o tempo de cadeia vencido, mas nem sabe onde está seu processo.” fonte estadão.